O CARÁTER E O DOM: 1 TIMÓTEO 3

O CARÁTER E O DOM: 1 TIMÓTEO 3

Há uma ordem moral no texto pastoral de 1 Timóteo 3 que precisa ser ouvida com seriedade. O apóstolo apresenta não um catálogo de competências ministeriais, mas um inventário de qualidades morais. A Bíblia não começa exigindo diplomas, público ou resultados; começa descrevendo rosto, temperamento e caráter. Antes de solicitar que alguém faça bem o ministério, o texto bíblico exige que alguém seja honesto ao fazê-lo.

AS PALAVRAS DO TEXTO
• ἀνὴρ μιᾶς γυναικὸς ἄνδρα (anēr mias gynēkos andra) — marido de uma só mulher: fidelidade conjugal e integridade relacional, não mero formalismo.
• νηφάλιον (nēphalion) — sóbrio, moderado: alguém que domina seus apetites e paixões; autocontrole.
• σωφρόν (sōphron) / σωφροσύνη (sōphrosynē) — prudente, sensato: equilíbrio interior e julgamento reto.
• κόσμιον (kosmion) — respeitável, decente: vida ordenada que gera honra, não escândalo.
• φιλοξενον (philoxenon) — hospitaleiro: disposição prática para acolher e servir ao próximo.
• μὴ πλήκτην (mē plēktēn) — não violento, não agressivo: alguém que não reage com brutalidade.
• ἐπιεικῆ (epieikē) — amável, gentil: líder cuja postura demonstra graça e paciência.
• ἄμαχον (amachon) — cordato, não briguento: alguém que evita contendas e não vive em espírito de conflito.
• ἀφιλάργυρον (aphilargyron) — não amante do dinheiro: coração livre da ganância e da manipulação financeira.
• διδάσκαλον ἱκανὸν (didaskalon hikanon) — capaz de ensinar: característica diretamente relacionada ao desempenho, competência ou dom.
• ἀνέγκλητος (anegklētos) — irrepreensível: síntese ética de toda a lista; caráter que não dá margem a acusações legítimas.

Percebe-se que a maior parte qualifica o ser (sóbrio, sensato, respeitável, hospitaleiro, amável, pacífico), e somente uma palavra, de fato, remete diretamente ao fazer (apto para ensinar). Os dons são necessários, mas devem estar enraizados em virtudes.

POR QUE ISSO IMPORTA?
Porque o ser precede o fazer. Quando a igreja inverte essa ordem e passa a valorizar carisma, “resultados” e atuações acima da integridade, abre-se um caminho perigoso. E não é somente um risco moral, é um risco eclesiológico e espiritual. Um líder carismático pode produzir inúmeros programas e aparente crescimento, mas, se esses frutos não brotam de um solo de santidade, mais cedo ou mais tarde as raízes mostram podridão: escândalos, manipulação, abusos e culto à personalidade.
A Escritura deseja trabalhadores competentes, sim, mas deseja, antes disso, vidas que testemunhem o Evangelho. O dom sem domínio de caráter é um incêndio que destrói a própria casa que deveria aquecer.
Hoje, em muitos contextos, a pergunta não é “quem vive como Jesus?”, mas “quem traz resultados?”. E, com isso, talentos sem formação espiritual são promovidos, falhas morais são toleradas e o crivo bíblico do caráter é enfraquecido.
Mas também existem homens e mulheres de Deus que resistem a essa lógica: pessoas anônimas, fiéis, perseverantes, que sustentam igrejas inteiras com sua integridade. A santidade raramente aparece nos holofotes, mas é ela que mantém a comunidade firme nos dias difíceis.
Se permitirmos que a eficiência substitua a integridade, construiremos impérios humanos frágeis. Mas, se escolhermos líderes segundo o padrão de Paulo, construiremos comunidades que resistem, florescem e testemunham.

Que sejamos, antes de tudo, pessoas moldadas por Deus, para o dom servir ao Reino, e não o Reino ao dom.
— Rafael Assiz 


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