E A MULHER DE LÓ OLHOU PARA TRÁS…

E A MULHER DE LÓ OLHOU PARA TRÁS…

“E a mulher de Ló olhou para trás e se tornou uma estátua de sal” (Gn 19:26).

Quando meditamos no texto, ele revela um drama existencial que atravessa os séculos e fala diretamente às entranhas da nossa alma. Quantos já leram isso e seguiram adiante como se fosse somente mais um detalhe de um juízo divino?
Mas pare e medite comigo. Ela não tem nome. Ela é a mulher de Ló. A Bíblia nunca nos diz o nome dela. Ela é chamada somente de “a mulher de Ló”. Ela não é protagonista, não é ouvida, não tem fala. Está à sombra de um homem que, momentos antes, havia oferecido as próprias filhas como moeda de troca. Que tipo de ambiente emocional essa mulher carregava? Que dores não ditas habitavam nela?
Ela é invisível e esquecida e justamente no instante final de sua existência… ela se torna visível, mas como estátua. Um corpo parado no tempo. Uma memória congelada. Um monumento à tragédia de quem não conseguiu partir.
O olhar dela, a paralisia, o texto não diz somente que ela “olhou para trás”. O verbo hebraico usado é nabat (נָבַט), acompanhado da expressão acharav (אַחֲרָיו), um olhar carregado de afeto, de vínculo emocional profundo. Não foi um mero virar de cabeça. Foi um olhar de saudade, de apego, de hesitação amorosa.
Ela olhou com desejo. Talvez visse ainda ali, entre as chamas, os lugares seguros da sua infância, os cantos da casa, os rostos conhecidos, os gestos cotidianos. A cidade estava sendo destruída, mas talvez para ela ainda fosse “lar”. Ainda fosse vida. Ainda fosse memória.

Ela se tornou uma estátua de sal. Por que sal?
O sal, no mundo antigo, era ambíguo. Juízo e bênção. Morte e aliança. Ele era usado para esterilizar terras amaldiçoadas (Juízes 9:45), impedindo que nelas qualquer vida brotasse. Mas também era símbolo de preservação, usado nos sacrifícios e alianças (Levítico 2:13; Números 18:19).
Ela se tornou aquilo que a cidade também se tornaria: um território infértil, um espaço onde a vida já não poderia florescer. Mas, ao mesmo tempo, ela se torna um símbolo, um alerta eterno. Mais do que punição, uma parábola viva. A mulher de Ló não foi somente castigada, ela se tornou um aviso esculpido: um lembrete de que, muitas vezes, o que nos destrói não é o fogo que vem de fora, mas o apego ao que Deus já desfez por dentro.

Quantos de nós hoje não vivemos do mesmo jeito?
Presos a um passado que já desmoronou. Apegados a vínculos afetivos, estruturas emocionais, memórias que Deus já nos chamou a deixar para trás. Mas continuamos lá... com o coração amarrado ao que já não existe. E viramos monumentos de saudade, estátuas emocionais paradas no meio do caminho da graça.

NÃO PARE, NÃO OLHE PARA TRÁS 

Há momentos em que Deus nos chama para partir. Para sair de Sodoma, seja ela uma relação, uma ferida, uma culpa, um ciclo, uma ilusão. Mas sair de verdade exige mais do que mover os pés. Exige levar o coração junto.
A mulher de Ló ficou para trás não porque desobedeceu mecanicamente, mas porque ela não conseguiu soltar o que precisava morrer. É isso, essa prisão emocional foi sua ruína.
Você não é um monumento. Você não foi feito para ficar paralisado em ruínas emocionais. Não carregue mais o que precisa ser deixado. Não permita que a saudade se torne uma sentença. Deus está chamando para caminhar. Para recomeçar. Para viver.
Não olhe para trás com saudade do que já foi consumido. O caminho da vida está adiante, e há uma promessa eterna te esperando.



Pr. Rafael Assiz @rafaelassiz
Escritor, Teólogo, Mestrando em Ciências da Religião (UMESP). Pós-graduado em Teologia e Interpretação Bíblica (FABAPAR), Estudos Bíblicos no Novo Testamento (UNICESUMAR) e Aconselhamento e Psicologia Pastoral (F.I).


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